segunda-feira, 1 de outubro de 2012

CACHAÇA NÃO É ÀGUA NÃO



Calculo que 90% dos artistas não são preparados para encarar o sucesso sem que ele mexa com suas cabeças. Os grandes cantores, escritores, pintores, atores, jogadores de futebol, etc., no auge de suas carreiras, muitas vezes seduzidos por falsos amigos, são tentados e enfrentam problemas com drogas, cigarros, álcool, com os vícios em geral. Exemplos conhecidíssimos do povo brasileiro: O grande Nelson Gonçalves que, no ápice de sua carreira, por influência de empresários inescrupulosos, se entregou às drogas, e jogou pelo ralo uma belíssima história. Em seus depoimentos ele chegou a dizer que algumas vezes cantou em troca de uma porção da erva maldita.Garrincha, outro exemplo bastante conhecido por todos nós. Um astro que se destruiu pelos vícios. São inúmeros casos: Noel Rosa, Cazuza, Renato Russo, Paulo Sérgio, Antonio Marcos, Elis Regina... Nomes reconhecidos no Brasil e no exterior.Numa menor dimensão, aqui no Cariri do Ceará, uma Orquestra de Baile que, na euforia das décadas de 60 e 70, agendava e cumpria uma média de 15 shows por mês, enfrentou alguns problemas dessa natureza com alguns de seus componentes mais famosos.Entretanto, devido as dificuldades para aquisição dessas drogas caríssimas, eles se viciaram e ficaram dependentes da cachaça regional, extraída basicamente da nossa cana-de-açúcar nordestina.Os dependentes dessa aguardente, embora jovens, passaram a ter visões do além. Alucinações. Um caso verdadeiro, testemunhado por muitos colegas, aconteceu na sede social da ARCA-Associação Recreativa e Cultura de Araripina-PE, no início dos anos 70. Ao chegarem na Cidade os componentes da orquestra foram informados de que a construção daquela recém inaugurada casa de espetáculos fora realizada sobre o terreno do antigo cemitério público, demolido, desativado e transferido para outro bairro.Não vou declinar os nomes dos personagens dessa história porque são cidadãos hoje sexagenários, septuagenários que merecem as nossas considerações e o nosso respeito. São excelentes pais de família, avós queridos por muitos netos etc. Antigamente as festas começavam às 20:00 horas. O melhor da sociedade do Sertão do Araripe se fazia presente nesse grande evento. E os músicos com suas garrafinhas de cachaça bem ali do lado, de vez em quando, entre uma música e outra, uma bicadinha de cachaça. O que é fato é que meia noite em ponto o tecladista e o baterista mudaram o tom, o ritmo e a melodia da música que a orquestra estava executando naquele momento.Todos tiveram que parar. E a explicação deles não foi muito convincente, Vou repetir aqui as palavras que eu ouvi da boca deles. A mais pura verdade. Um cidadão do qual eles dois não conseguiam ver o rosto surgiu em meio a iluminação da palco, usando um vestuário preto de maestro e com uma batuta na mão, começou a fazer a regência do bolero de Ravel. A orquestra estava tocando os sucessos internacionais dos “Beatles”. E a miragem desse maestro impostor, sendo vista apenas pelo tecladista e pelo baterista, ordenava com bastante ênfase que eles dois tocassem o bolero de Ravel. Muitas discussões no palco. O dono da orquestra teve que intervir para contornar a situação. Visivelmente embriagados os dois suplicavam: Sr. Fulano, retire esse maestro de nossa frente... Olhe ele aí acenando a batuta... Ele está nos atrapalhando... Nós não vamos poder tocar com esse sujeito regendo . o bolero de Ravel e gritando no pé do ouvido da gente... O público não entendia o que estava acontecendo com aquela famosa orquestra, até que alguém sugeriu: Vamos rezar um “Pai Nosso” e uma “Ave Maria” (Esse ritual ainda hoje é usado pela Polícia Civil de Juazeiro do Norte. Quando o caso é muito complicado o Delegado reúne o pessoal envolvido na operação, para rezar de mãos dadas.), que esse fantasma desaparece.Também na minha querida Icó-CE, Ronaldo, o maior zagueiro da história do nosso futebol (Também detentor do título de maior fofoqueiro da Cidade), em 1965, passou por esse pedacinho. No auge do grandioso sucesso da nossa seleção, da qual ele era o capitão e ídolo da torcida, Ronaldo enveredou pela cachaça Aracati e ficou por algum tempo acometido dessas alucinações.Ronaldo afirmava que uns negrinhos pigmeus, de chifre, de rabo e com os olhos de fogo estavam lhe perseguindo.Em plena luz do dia ele saía de casa correndo e em poucos minutos fazia o percurso do bairro do Rosário até a Igreja do Monte num só fôlego. Durante a corrida, em disparada, ele repetia o tempo todo: “Deixem-me em paz magote de diabos... Voltem para o inferno de vocês... Eu não vou agora não...”Coincidiu um dia em que eu e mais seis amigos meus estávamos brincando de jogar “sete pecados” (Antiga brincadeira que nós fazíamos, cavando 7 buracos no oitão do Teatro Municipal das Ribeiras dos Icós, para acertar uma bola confeccionada de algodão e areia em um dos buracos. Quem errava era obrigado a recolher a bola, e atirá-la nos outros companheiros para se livrar do castigo. O castigo era ficar de costas com a cara colada na parede, enquanto os outros participantes ficavam a 5 metros bombardeando as costas do sujeito.Há quem diga que era uma brincadeira de índio. Mas a gente se divertia muito com isso. A bola caiu no buraco de “Du Bico de Maria de Agostinho”. Nós todos corremos em disparada rumo ao ponto de apoio que era a árvore canafístula centenário (Ainda hoje existe), em frente ao sobrado de Rafael. Nesse exato momento nosso grande Zagueiro Ronaldo vinha caminhando, fugindo dos capetinhas de suas alucinações, e entendeu que nós estávamos correndo atrás dele.Todos nós tínhamos em média 10 anos de idade. Ficamos assustados com aquele crioulo mais preto do que Pelé, de 2 metros de altura, 90 km de peso, pés descalços, sem camisa, só de calção de jogador, e tome pé. Nós aguentamos uns 15 minutos rodeando o Teatro de Icó. Em tempo de botar os bofes pela boca. E de vez em quando Ronaldo ainda gritava: “Deixem-me em paz magote de diabos... Voltem pró inferno..”. Aí é que a velocidade aumentava...A Cachaça Aracati deixou nessa situação o nosso maior ídolo da bola... Acredito eu que o inventor da cachaça, ao ver lá de cima uma presepada dessas, deve ter se arrependido muito do mal que causou à humanidade.Conversando com o ex-zagueiro Ronaldo, na semana passada, na calçada da casa de minha mãe, lá em Icó-CE, nós tocamos nesse assunto. Ele nega que isso tenha acontecido. Mas as lembranças dos meus tempos de criança são muito nítidas na minha memória. Escrevendo isso agora parece que está passando um filme na minha cabeça. Os momentos de terror vividos por mim e pelos meus amiguinhos naquele dia, eu jamais esquecerei. Ronaldo tem razão de não se lembrar... Pois ele estava doido de pedra...

Do livro: João Dino, Histórias, Estórias,Crônicas e "causos".

 

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