segunda-feira, 13 de agosto de 2012

PEIDORREIRO DE ORÓS


Essa ameaça de escapamento de radioatividade que tem preocupado o governo japonês, lá no complexo de Fukushima, me fez lembrar uma situação sufocante e angustiante, em outra dimensão, vivida por mim e mais uns trinta amigos de adolescência. Foi na Rua 16 da Cidade de Orós (CE), em 1968. A TV Tupy estava em fase experimental. Todo finalzinho de tarde, o sinal gerado lá em Fortaleza, chegava às cidades do Vale do Salgado e do Centro Sul, porém muito ruim. A imagem, em preto e branco, era como um nevoeiro crepitando e se locomovendo. O som a gente ouvia umas coisas e outras não. Era muito raro acontecer, mas tinha dias que a imagem aparecia nítida, perfeita. Dava prá gente ver até os poucos fios de cabelo que insistiam em permanecer sobre a careca do apresentador do jornal, Cândido Colares. Eu fui privilegiado nesse assunto porque, em 1963, acompanhando o meu pai numa viagem de caminhão para Fortaleza, eu vi uma televisão ligada na eletricidade, e funcionando, no salão de exposição da antiga loja Romcy. Eu achei a coisa mais linda do mundo. Ted Boy Marino enfrentando os adversários na luta livre. Cheguei no Icó contando isso aos meus amigos, passei por mentiroso durante muito tempo. Ninguém acreditava que um lutador de 1,90 metro de altura, pudesse aparecer inteiro, dentro do tubo de imagem de uma pequena televisão (l,00 X 0,90 m). Cinco anos depois (1968), eu reconquistei a confiança dos meus amigos: Chico Gago de Lili, adquiriu uma televisão. Convidou toda vizinhança para assistir a inauguração. Foi a 1ª TV que funcionou no Icó. A antena foi colocada a 30 metros de altura, sobre 6 canos de ferro de 5 m cada um, emendados, fixados na parede da cumeeira da casa. A posição: virada para a serra de Alencar, Distrito de Iguatu. A multidão para ver essa TV era tão grande que Chico Gago colocava na janela maior da casa. Quase 1,5 m de largura por 1,00 m de altura. Oh coisa linda. A caixa de madeira parecia um armário. Foi assim também na casa de Seu Tamundo, poucos meses depois. A chegada dessas duas TV, sobrecarregou de preocupação o arrendatário do Cinema, Sr. BORÓ, e também Expedito Costa da Paraíba, que fazia a locação das fitas para o Cine doTeatro Municipal das Ribeiras dos Icós. Pois bem meus amigos, essa história foi se espalhando, e Seu Zezão do DNOCS, que era um pouco entendido de eletrônica, e também detentor de uma confortável situação financeira, instalou na Rua 16 de Orós (CE) uma televisão.Seu Zezão era um pouco afobado, assim que nem Seu Lunga, do Juazeiro, mas era muito generoso e gostava muito de crianças. Talvez porque ele não tinha filhos. Certa vez eu ouvi Vó Zefinha conversando com D. Maroca de Zé Padre sobre esse assunto. Eu entendi bem quando Vó comentou: “Zezão não tem filho, mas a culpa não é de D. Maria não... Ela é sarada... Pode dar cria... É ele que não faz menino, porque trabalhando na construção do túnel do açude, sofreu uma pancada nas partes e ficou com um “ovo goro”.E estávamos nós, me lembro como se fosse hoje, uns trinta meninos sentados no chão, na sala da casa de Seu Zezão, cinco horas da tarde, nesse dia assistindo o que parecia ser um filme de Zorro.Um dia a TV mostrava o seriado PERDIDOS NO ESPAÇO, onde a família Robinson se aventurava, a bordo da nave júpiter 2, utilizando o Robô B9, idealizado e construído por Dr. Smith, descobrindo os segredos do universo. Esse tal de Dr. Smith, só servia para colocar os tripulantes da nave espacial em situações de risco. Só faltava matar a gente de raiva. No outro dia era o seriado de Zorro, com a praga daquele Sargento Garcia. Pense num homem odiado pela meninada. A vida dele era perseguir Zorro. E Zorro era o nosso ídolo maior.A posição que a gente ficava era muito desconfortável: sentados no chão, pernas encolhidas, braços esticados, mãos entrelaçadas sobre os joelhos... Tinha que ser assim porque era grande a quantidade de meninos. E Seu Zezão era muito generoso: Ele não deixava ninguém do lado de fora. Na hora que a TV entrava no ar, ele abria aquela porta enorme, característica das residências oficiais dos funcionários do DNOCS, e ditava as ordens: Forma a fila, entra de um em um, sem fazer barulho. Depois ele fechava todas as portas e janelas. Somente assim era possível ver alguma coisa.A maioria dos meninos só de calção, confeccionados com o tecido dos sacos vazios que eram doados à pobreza pelos funcionários da Usina de Beneficiamento de Algodão de Eliseu Batista – ELIBA S.A. Quase todos sem camisa. Era aquela catinga de suor e de mijo. Somente a minha turma, Fransquim de Berenice, Chico de Zé Sabugo, Luiz de Maroca de Zé Padre, Diassis de Nenzinha de Zé Pretim, Bonfim de Bia Laurentino e Macaúba, tomava banho todo dia. Na casa de Vó Zefinha, quem não se asseava não se sentava na mesa para comer.Momentos de tensão... Nervos à flor da pele... O exército de Monterrey – México, capturou um amigo de Zorro. A corte se reuniu e o condenou a morte... O Sargento Garcia organizou a forca... Colocaram a corda no pescoço do acusado... O Carrasco se posicionou... O Xerife começou a contagem regressiva para puxar o tamborete de madeira que sustentava o amigo de Zorro... Enquanto isso, Zorro aparece na tela ainda colocando a máscara. Imaginem vocês... A demora poderia ser fatal... A .vida daquele cristão estava nas mãos dele. E para driblar aquela centena de soldados que ele tinha pela frente... Oh agonia... Finalmente Zorro pulou da janela do sobrado de 10 metros de altura... Caiu escanchado mesmo na sela do cavalo... E tome espora no vazio desse cavalo... Tome carreira...Meus amigos, devido essa adrenalina e, sobretudo, pela nossa má posição, um dos nossos companheiros, da maneira mais silenciosa que eu já vi em toda a minha vida, sem demonstrar qualquer movimento suspeito que chamasse atenção de ninguém, liberou um “peido azedo”, desses que exclui a proteção natural da camada de ozônio da atmosfera. Revirou de cabeça prá baixo a casa de Seu Zezão. Seu Zezão estava cochilando na cadeira tipo preguiçosa, deu um espirro que os vizinhos ouviram o barulho do outro lado da rua, levantou-se e saiu correndo como se fosse apagar um incêndio, e gritou: o que diabo foi isso? Abram todas as portas e janelas. Pense na aflição e na agitação que esse menino causou. Nós riscamos fósforos... queimamos folha de jornal... E nada de passar a catinga. Uns quinze minutos depois o ambiente voltou ao normal. Felizmente, na hora que Zorro chegou ao local do enforcamento, como é normal acontecer nos filmes, passou a vinheta da rede Tupy, e começou o bloco de comerciais. Nós não tínhamos perdido quase nada do filme.Tudo no lugar. Voltamos às nossas posições. Seu Zezão foi tomar água lá no pote da cantareira, e quando regressou fez um breve pronunciamento: Se alguém soltar outro “peido azedo” desses eu desligo a TV e boto todo mundo prá fora... Ouviram? Todos nós respondemos em côro: “ouvimos sim senhor”.Rolou a vinheta da TV Tupy. Recomeçou o filme. Lá vai Zorro puxando mais de 100 km, em tempo de matar o cavalo. E o Xerife estava lá: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2... Zorro apareceu e gritou com toda a força dos seus pulmões: Libertem meu amigo magote de covardes... Venham enforcar a mim seus bundas moles... Pense num homem de coragem... Desafiou todo o exército de Monterrey... Nisso ele puxou a espada da bainha... Só se via era menino mordendo os lábios, chupando dedos, comendo unhas... Êta hora agoniada. Pois vocês me acreditem... Justamente nesse momento de tanta aflição, tanta adrenalina, o mesmo elemento, utilizando a mesma tática do abafador, na maior covardia para com todos nós, liberou outro “peido azedo”. Mas esse com um poder de destruição bem maior. E tome espirros, tome tosse, tome nego engasgado, gritos, palavrões. Ouviam-se aqueles refrões muito conhecidos: “Comeu carniça amaldiçoado... Comeu urubu sem tirar o fato desgraçado... Êta cabra do cu podre... Esse está morto, só falta enterrar...” Pode ter sido coincidência, mas eu tive a impressão que até Zorro reforçou a entrada de ar do nariz, colocando o colarinho da camisa sobre aquele lenço preto que ele usava para cobrir a parte de baixo do rosto. Nos colégios se falava muito das bombas atômicas que os norte-americanos soltaram sobre as cidades Japonesas de Hiroshima e Nagazaki, durante a 2ª grande guerra mundial. Nós, que naquele dia inspiramos o escapamento de gases daquele cristão, naquele ambiente fechado, chegamos a pensar que seria a mesma coisa.Foi dramático. Hoje, quando vi a televisão mostrando o escapamento radioativo do complexo de Fukushima, no Japão, passou um filme na minha cabeça e me trouxe de volta esse passado tenebroso. Eu, que naquela tarde-noite, involuntariamente inspirei aquele ar poluido, posso avaliar o que os japoneses estão sofrendo: Radioatividade capaz de matar seres humanos deve ser, nada mais nada menos, do que aroma de “peido azedo”.E Seu Zezão, cumpriu literalmente o que prometeu: desligou a TV e botou todo mundo prá fora da casa dele.No terreiro da casa começou uma briga generalizada, porque Fransquim de Berenice anunciou: “Eu sei quem foi que soltou os dois peidos..”. Êta confusão... Quase todo mundo foi prá cima dele. E aos gritos, aos berros, alguns ameaçavam: “Diga quem foi... Diga quem foi... Prá gente tapar o cano de escape dele com um sabugo de milho...”Ainda bem que Fransquim não teve coragem de dizer, porque o elemento teria sido linchado, sumariamente.A briga só terminou porque esse arranca-rabo todo estava acontecendo em frente à cadeia pública da cidade. Quando o Delegado se aborreceu com o barulho, usando aquele tom de voz suave e educado dos policiais de antigamente, ele gritou se esgoelando: “Vocês vão acabar com esse “furdunço” ou querem que eu meta todo mundo no xadrez?Problema resolvido. Acalmaram-se os ânimos. Antigamente a polícia tinha moral. Hoje é que menores de idade deitam e rolam. E até tiram sarro com a cara dos policias.Meus amigos, desde aquela tarde-noite de 1968, até hoje, nós nunca conseguimos identificar o causador daquele tumulto. Eu poderia até citar um nome... Mas é apenas uma suspeita investigativa. Aqui prá nós: na casa de Zé Sabugo, naquele dia, o almoço tinha sido à base de feijoada recheada com tripa de porco e ovo cozido... De sobremesa, batata doce. Minhas investigações seguem essa trilha porque Chico de Zé Sabugo não tinha costume de comer essas coisas. Pode ser que o organismo dele tenha reagido ao tempero, e ele, culposamente, provocou aqueles transtornos. Para aumentar a minha suspeita, depois desse acontecido, Chico ficou estranho com todo mundo. Passou a andar assustado, desconfiado, com o rabo entre as pernas, procurando se esconder da gente. Não quis mais amizade com ninguém. O comportamento dele ficou idêntico ao de um Prefeito de uma Cidade que eu conheço nesse mundão de meu Deus. Eu sempre fui comedido, muito cauteloso. Mas tenho 99% de certeza que foi Chico de Zé Sabugo o grande peidorreiro desse lastimável episódio da Rua 16 de Orós, em 1968. NOTA: Dedico essa história ao meu grande amigo dos tempos de criança, adolescência e juventude, e hoje, nos tempos modernos, o mais recente amigo que adicionei no meu ORKUT: Fransquim de Berenice. Ela vai ler essa história em Orós (CE). Abraço sincero do seu grande amigo João Dino.

Do livro:João Dino, Histórias, Estórias, Crônicas e "causos" Autor João Dino.


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