quarta-feira, 4 de julho de 2012

EXPLICAÇÃO DE BÊBADO


Ano 1970. Minha quase bicentenária Icó-CE (169 anos de fundação), além das significativas mudanças de sua geografia, decorrentes da construção da BR 116, enfrentou uma verdadeira revolução em todos os aspectos. O dinheiro circulava em grandes quantidades. Empreiteiros de obras intermediavam serviços. Proprietários de apenas um caminhão, para atender a demanda do transporte de areia, pedras, barro, cimento, madeira, pessoal etc., trabalhavam três turnos
ininterruptamente.Ninguém tinha certeza de que amanhã estaria empregado ou prestando serviços. A regra era única: vamos aproveitar a oportunidade e ganhar dinheiro. Num sábado à tarde, finalzinho do expediente, o caminhão de João Pereira transportava a última carrada de pedra da semana, quando distante da cidade, uns cinco quilômetros, a barra de direção quebrou. O veículo desgovernado tombou num abismo e os 5 trabalhadores que estavam sobre a carroceria foram esmagados. Morreram todos no local do acidente. A cidade ficou de luto. O clamor era geral. Cinco velórios em diferentes ruas. O nosso pároco Pe. Macedo, o Prefeito, o Vice-Prefeito e os Vereadores a toda hora adentravam as residências para tentar confortar os familiares. Minha boêmia cidade ficou triste, enlutada.Paralelo a esse acontecimento, Germano Clementino, o melhor técnico em eletrônica da cidade e Iran de Antonio Pedro, o motorista de caminhão da confiança do seu patrão, o empresário Almir Alencar se reencontraram, e para atualizar as fofocas começaram a tomar umas cervejinhas no bar de Genebaldo. Dalí pegaram uma carona e foram tomar banho no açude do Distrito de Lima Campos. E tome cerveja, tome pinga, tome vodka e outras coisinhas mais.Perto deles alguém comentou que o açude de Orós estava sangrando e eles deram um pulinho para assistir o verdadeiro espetáculo que é aquele monumento construído pelo Presidente Juscelino Kubitschek, quando acumula uma lâmina de 3 metros d’água rumo ao Vale do Jaguaribe.Solidários aos familiares das vítimas do desastre do caminhão, ninguém estava sentindo falta desses dois cristãos em suas casas.E eles dois também não chegaram a ser informados sobre esse trágico acidente, porque já estavam na farra quando tudo aconteceu.Domingo à tarde, depois dos enterros das vítimas, apareceram na Rua Larga do Bairro do Rosário, cenário da maioria das minhas histórias, bêbados de não prestar, sujos, descabelados, lisos, sem lenços e sem documentos, Iran rebocando Germano.A fim de desocupar uma mão para bater na porta Iran teve que escorar Germano na parede porque ele não conseguia nem ficar de pé. E ele batia na porta chamando a mulher de Germano para colocá-lo dentro de casa. Finalmente a parte de cima da porta se abriu. A esposa contemplou aquela cena e se deu conta do que estava acontecendo. Viu com os seus próprios olhos a situação em que se encontrava o homem que diante do altar ela jurou amar e respeitar por toda a sua vida.Que tristeza! Que decepção! Na presença dos curiosos da rua, a calçada cheia de gente, os meninos empurrando aqueles dois bêbados, puxando o fundo das calças.Germano não podia fazer qualquer movimento. Mas Iran ainda gritava: Vão pro inferno magote de diabos... Ouvindo isso a meninada vaiava, jogava terra. Pense numa palhaçada. Nessa tarde, se Boro tivesse aberto o cinema do Teatro Municipal para fazer a sessão matinê, não teria apurado nem o dinheiro de pagar o aluguel da fita a Expedito Costa da Paraíba.Eu estava no patamar da Igreja assistindo tudo. Do meu lado Manel Guabiraba em tempo de morrer de rir vendo aquela presepada. Acionei o “REC” da filmadora que existe dentro da minha cabeça. Nesse momento eu vou acionar a tecla “PLAY” e repetir para vocês, sem acrescentar nem uma palavra, o que eu ouvi a esposa de Germano dizer (É bom lembrar que ela havia chegado da missa de corpos presentes e ainda estava com o rosário na mão): “Oh meu glorioso Senhor do Bonfim... Vós sois tão poderoso... Tão onipotente... Como vós permitis... Vira um caminhão, morrem cinco pais de família, no final de mais uma semana de trabalho, em pleno cumprimento do dever para ganhar o sustento de seus filhos... Porque vós não levastes dois insetos desses que não servem prá no mundo...” Nessa hora Iran segurava Germano com as duas mãos por debaixo dos sovacos. As pernas dele estavam dobradas, a calça caindo e a cabeça escorada na altura da barriga do amigo. Fazendo muito esforço ele conseguiu levantar a cabeça. Direcionou os olhos no rumo da porta onde a mulher estava fazendo esse mini sermão. Eu tenho testemunhas. Todo mundo ouviu quando ele com a voz imprensada entre a língua, os dentes e os beiços explicou: “Como era que nós ia morrer se nós num tava nem perto do caminhão que virou."

Extraìdo do Livro: João Dino, Histórias, Estórias, Crônicas e "causos".
(João Dino).



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